Como a Acomodação Familiar Impacta o Desenvolvimento de Crianças Autistas?

A acomodação familiar (AF) refere-se a mudanças realizadas pelos responsáveis com o objetivo de aliviar o sofrimento emocional da criança, como evitar situações que provocam estresse ou ansiedade. Comum em contextos de transtornos de ansiedade e Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), essa prática tem ganhado atenção também no campo do Transtorno do Espectro Autista (TEA), especialmente quando há comorbidades. Embora bem-intencionada, a AF pode interferir negativamente no tratamento e no funcionamento familiar, reforçando padrões disfuncionais.

Uma revisão conduzida por Brennan e colaboradores (2025) investigou a prevalência e os efeitos da AF em crianças autistas com ansiedade, TOC e comportamentos restritivos e repetitivos (CRRs), trazendo dados relevantes para a compreensão e manejo clínico desse fenômeno.

TEA, TOC e Ansiedade: Quando os Transtornos se Sobrepõem

Para compreender o impacto da AF em crianças autistas, é fundamental explorar como os sintomas do TEA, do TOC e da ansiedade se relacionam e se sobrepõem.

O TEA é caracterizado por déficits na comunicação social e pela presença de comportamentos repetitivos e restritos (CRRs), como estereotipias, insistência na mesmice, interesses fixos e alterações sensoriais. Esses comportamentos podem ter função autorregulatória e nem sempre causam sofrimento, o que os diferencia das compulsões observadas no TOC.

O TOC, por sua vez, envolve obsessões (pensamentos intrusivos) e compulsões (rituais mentais ou motores), geralmente vivenciados com desconforto e sofrimento psíquico. Em autistas, esses sintomas podem ser confundidos com os CRRs, especialmente quando incluem repetições verbais ou ações ritualizadas.

Além disso, os transtornos de ansiedade são altamente prevalentes no TEA, principalmente em crianças mais velhas com QI preservado. A ansiedade pode intensificar os CRRs, que funcionam como tentativas de regulação emocional. Esse entrelaçamento torna o diagnóstico e o planejamento de intervenção mais complexos.

O Papel da Acomodação Familiar

Acomodar significa, nesse contexto, evitar estímulos ansiogênicos, mudar rotinas, fornecer garantias excessivas ou até participar de comportamentos compulsivos. Ainda que reduza a angústia da criança a curto prazo, a AF pode reforçar a evitação, aumentar a dependência e contribuir para a manutenção dos sintomas, além de impactar negativamente o bem-estar dos responsáveis.

Os dados indicam que a AF está associada a pior desfecho em tratamentos para TOC e ansiedade, maior estresse parental e redução do funcionamento familiar. Embora as famílias frequentemente ajam com a intenção de proteger as crianças, a AF pode alimentar um ciclo de agravamento do sofrimento.

Acomodação Familiar no TEA com Comorbidades

A partir dos dados analisados, nota-se altas taxas de AF em crianças autistas com comorbidades, como ansiedade – variando entre 97,5% e 99,4% dos casos (Brennan et al., 2025). Os comportamentos mais comuns incluem:

  • Tranquilizar constantemente a criança;

  • Alterar rotinas para evitar ansiedade;

  • Reduzir demandas e expectativas;

  • Evitar locais ou situações ansiogênicas.

Fatores Relacionados à Acomodação Familiar

Diversos elementos influenciam a frequência e o impacto da AF:

  • Criança: menor idade, QI mais baixo, sintomas mais graves de TEA, presença de comportamentos externalizantes e altos níveis de intolerância à incerteza.

  • Responsáveis: ansiedade elevada, percepção de estresse e sentimento de impotência frente às reações intensas da criança.

  • Contexto socioeconômico: renda familiar mais baixa se associa a maior frequência de AF.

Intervenções Baseadas em TCC e Redução da AF

A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) é considerada uma intervenção eficaz para ansiedade e TOC em crianças, inclusive autistas. Quando adaptada ao público autista, a TCC incorpora:

  • Materiais visuais;

  • Comunicação direta;

  • Estrutura padronizada;

  • Programas de recompensa;

  • Psicoeducação ampliada;

  • Estratégias de regulação emocional;

  • Envolvimento dos responsáveis e da escola.

De acordo com a revisão, programas como SPACE (voltado aos responsáveis), Coping Cat e BIACA (voltados às crianças) demonstraram redução significativa da AF após a intervenção. Essa redução se associa diretamente à melhora dos sintomas de ansiedade, sendo mantida em acompanhamentos de médio prazo. No entanto, altos níveis de AF antes do tratamento podem prever piores desfechos.

AF em CRRs no Autismo

Apesar de menos estudada, a AF também se manifesta diante dos comportamentos repetitivos e restritivos (CRRs). Cerca de 75% a 80% das famílias relataram comportamentos de acomodação mensalmente, como:

  • Fornecer itens específicos que aliviam os CRRs;

  • Participar de ações ritualísticas;

  • Alterar a rotina para evitar desconforto sensorial ou resistências à mudança.

A presença de AF nesse contexto se correlaciona com maior gravidade dos sintomas, maior estresse dos responsáveis e pior desempenho nas habilidades adaptativas das crianças.

Tensões entre Acomodação e Aceitação

Por fim, percebe-se que a acomodação familiar é uma prática frequente em famílias de crianças autistas, especialmente quando há comorbidades como ansiedade e TOC. Embora possa aliviar o sofrimento imediato, sua manutenção prolongada pode interferir negativamente no tratamento e na qualidade de vida familiar.

A literatura sugere que intervenções baseadas em TCC, com envolvimento ativo dos responsáveis, são eficazes para reduzir a AF e melhorar os sintomas de ansiedade. No entanto, ainda há muito a ser compreendido sobre os mecanismos subjacentes, o papel da AF em diferentes contextos e como equilibrar a necessidade de apoio com a promoção da autonomia.

Nessa lógica, é essencial desenvolver abordagens integradas, que considerem o funcionamento autista, respeitem as especificidades e forneçam aos responsáveis ferramentas para apoiar sem sobreproteger – de modo a promover, assim, o desenvolvimento saudável e a qualidade de vida de toda a família.

Referência Bibliográfica:

BRENNAN, Justine et al. A Systematic Review of Family Accommodation in Autistic Youth: Anxiety Disorders, Obsessive-Compulsive Disorder, and Restricted and Repetitive Behaviors. Springer Nature Link, [s. l.], 19 fev. 2025.