Disfunções executivas para além de um diagnóstico – Como fatores circunstanciais podem impactar o nosso funcionamento cognitivo

A importância do desenvolvimento das chamadas funções executivas para a aquisição de importantes habilidades de vida diária e escolares da criança tem sido difundida e discutida cada vez mais por profissionais e entusiastas da educação. Mesmo que,  para alguns, o termo função executiva ainda seja desconhecido, o mesmo não acontece em relação ao mais famoso diagnóstico caracterizado por prejuízos executivos: o TDAH. 

Basta mencionar a sigla em um roda de amigos, pais ou professores para que surjam comentários e relatos diversos sobre o transtorno. De críticas à medicação a opiniões diversas sobre excesso de diagnósticos, todos têm algo a acrescentar sobre o assunto. Mas será que sabemos realmente o que são disfunções executivas? Como e quando se apresentam? E, ainda mais, será que as dificuldades em gerir o próprio comportamento sempre estão associadas a um diagnóstico? 

Neste post, vamos responder a essas e outras perguntas muito comuns sobre o tema.

Sabe-se que o córtex pré-frontal, um dos principais componentes do substrato neurológico das funções executivas, possui um processo de maturação mais tardio, quando comparado a outros (DIAS, SEABRA, 2013). Por esse motivo, ao atingir a idade adulta, espera-se que o indivíduo já possua um maior controle de suas habilidades, sobretudo diante de todas as informações e experiências que ele acumulou até então. Por outro lado, adentrar a vida adulta também implica enfrentar novas demandas e desafios inéditos relacionados a dinheiro, família, trabalho, entre outros.

Administrar a rotina e conciliar tantos compromissos de maneira eficiente e eficaz não são, cognitivamente falando, tarefas simples. Seja finalizar um projeto no trabalho, escrever um texto acadêmico, economizar dinheiro para um plano futuro ou lidar com as imprevisibilidades da vida, tudo isso exige do nosso cérebro uma série de esforços cognitivos. Agora imagine fazer tudo isso ao mesmo tempo? É fato que exige muito empenho para inibir os distratores, controlar os impulsos de mudar de tarefa, flexibilizar o pensamento em busca de novas e melhores soluções, armazenar e manipular informações importantes.

Definitivamente, no dia a dia, não nos dedicamos a observar esses processos, mas, para cumprir objetivos, precisamos direcionar e monitorar o nosso comportamento desde o momento do planejamento até a finalização de tarefas, para isso, recrutamos nossas funções executivas. Contudo, muitas vezes, esses mecanismos de controle do comportamento estão deficientes e causam prejuízos para os indivíduos. Seria então um transtorno? Calma,  vamos lá que o objetivo desse post é justamente discutir que, embora um baixo funcionamento executivo pode sim ter origem orgânica e neurobiológica,  questões ambientais e circunstanciais, como stress, privação de sono, problemas financeiros e sobrecarga cognitiva também estão relacionadas a um desempenho cognitivo insatisfatório. Isso não se trata de uma opinião, mas de uma afirmação baseada em estudos diversos. A seguir, apresentaremos alguns deles.                               

Dentre todas as responsabilidades inerentes à vida adulta, a organização das finanças é frequentemente um ponto de dificuldade para os adultos. Nessa perspectiva, Ong et al.(2019), em um estudo conduzido com uma amostra de indivíduos pobres e endividados em Singapura, analisaram os efeitos de um programa de alívio de dívidas e mostraram que a redução do valor devido melhorou o funcionamento cognitivo, a capacidade de  tomada de decisões econômicas e reduziu a probabilidade dos beneficiados em apresentar quadros de ansiedade. Essas melhorias também foram observadas em outros estudos observacionais que associam o endividamento a uma saúde psicológica deficiente.

#Dica: Olha esse artigo:

A hipótese é de que as demandas da vida diária sob escassez e preocupações orçamentárias consomem recursos mentais, prejudicando a capacidade decisória e causando comportamentos contraproducentes que, inclusive, contribuem para a perpetuação da pobreza.  E ao comparar os participantes antes e depois do experimento, foi observado que as melhorias psicológicas e cognitivas variaram de acordo com o  tipo de dívida (dívida única ou várias dívidas) e que o valor do débito quitado teve pouca influência nessa melhora. Segundo os autores, a explicação para esse achado está no processo de contabilização mental e ocorre porque é como se cada dívida consumisse uma parte da nossa limitada capacidade cognitiva. Então, o fato de reduzir o número de contas a pagar liberaria “espaço no cérebro”, permitindo que outras tarefas, antes desconsideradas, fossem contempladas. A melhora observada se dá justamente por esse alívio cognitivo, uma vez que tal espaço liberado pode então ser utilizado para outros fins.

Outros estudos que investigam a relação da pobreza com os processos executivos, como o de Fonseca (2022), também destacam como as preocupações financeiras consomem recursos mentais. Para o autor, o problema da escassez é fundamental para entender as nuances comportamentais no âmbito da tomada de decisão das pessoas que vivem em condição de pobreza. A explicação é que indivíduos que vivem sob restrição orçamentária têm maior necessidade de ponderar custos de oportunidade, o que sobrecarrega os recursos cognitivos. Além disso, devem gastar uma grande quantidade de energia mental todos os dias para apenas assegurar o acesso às necessidades básicas, o que dificulta ainda mais o bom desempenho das funções executivas. 

 O que essas conclusões podem nos informar? Bom, em primeiro lugar, elas nos auxiliam a entender que o impacto de estar endividado e viver em situação de vulnerabilidade socioeconômica não se limita aos aspectos financeiros, mas  também a questões psicológicas e cognitivas. Além disso, o conhecimento do conceito de contabilidade mental pode auxiliar instituições financeiras e governos na elaboração de programas e políticas públicas de renegociação de dívidas e combate à pobreza, a partir de estratégias com menores custos psicológicos e que podem ser mais efetivos. Por último, pensando na prática clínica dos psicólogos, constatar a melhora do desempenho cognitivo e dos processos de tomada de decisão após o alívio das dívidas nos permite refletir sobre a importância de investigar a origem dos sintomas, de considerar o contexto ambiental e socioeconômico dos indivíduos e, principalmente, de planejar intervenções condizentes com as circunstâncias, portanto mais promissoras.

Em outro estudo, Baumeister (2002) explorou a relação entre funções executivas e sobrecarga cognitiva, e reforçou a importância do descanso e de um estado de humor positivo para um bom desempenho executivo. Quando estamos com pouca energia ou com muitas preocupações, tendemos a poupar nossos recursos cognitivos restantes, o que acaba por impactar o nosso desempenho em tarefas mais complexas. 

Nesse sentido, antes de suspeitar de um possível diagnóstico do neurodesenvolvimento, é fundamental analisar o nível de sobrecarga cognitiva do paciente, as contingências atuais nos diversos âmbitos da vida e o início, a intensidade e a frequência dos sintomas. Esse olhar contextual  e minucioso para o indivíduo, que vai além de um checklist de sintomas, é imprescindível para uma avaliação  diferencial, pois, como discutimos nesse post, quadros situacionais podem facilmente mimetizar quadros crônicos, como TDAH.

Autoras: Alice Zocrato e Mariana Atheniense – 

Trabalho produzido em função das discussões do grupo de estudos GENE – (Grupo de estudos em neuropsicologia) da Neuropsicoterapia.